sábado, 8 de agosto de 2009

Sem palavras



Uma cama desarrumada
Uma ou duas semana passaram e eu ainda quero esquecê-lo. Beijos sempre são malditos pra despertar sentimentos, mesmo quando não os quer. Eu não queria sentimentos, não naquela ocasião, não nesse momento. Mas, como eu poderia desviar? Eu estava embriagada. Cai da cama desarrumada. Uma mistura de afeto com tesão pesavam a minha cabeça fazendo-a girar. Sempre me questiono porque saio nua por aí. Nunca compreendo as minhas próprias respostas, tão baseadas em argumentos de sinceridade e prazer de ser o que se é. Não, eu não queria mais viver sob aquele sentimento de necessidade de limite para as sensações. Pior que masoquismo... Essa sensação desbota a minha alma colorida, me transforma num ser egoísta e pouco apaixonado por si. Prefiro viver comigo mesma. Amo-me de corpo inteiro. Não quero deixar de ser o que sou pra mim.
Mesmo não negando o prazer dos corpos eu me senti mais uma vez pressionada a emudecer a voz do desejo. Não quero isso não. O prazer está em ser o que se quer ser, sentir o que insurge em cada ocasião. Qualquer forma de controle é pequena e mesquinha. Abaixo as amarras dos desejos. Tô fora de clausuras. Principalmente quando me sinto pressionada a construí-las.

domingo, 2 de agosto de 2009

Gozo, nao nego


Um sorriso mais gostoso que as mãos mastigaram a minha razão. Misturando afeto com tesão embriaguei-me sem medos dos vexames que eu pudesse causar. Desatei laços e pressionei entre as minhas cochas a vergonha social. Meu gozo derreteu as fitas do aprisionamento. Liberta prossigo num vai e vem suave, sem pressa ou dissimulações.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Minha dor



O que em me incomoda não é nada além dos “valores” (não casualmente assemelhado a linguagem da troca de mercadorias). Se eu pudesse libertar os grilhões já em meu ser incorporado, com toda a minha força, sem ressentimentos, adentrava no mar dos prazeres. Não posso! Sei que seria perseguida. Sei o quanto sou perseguida por ainda debater-me contra a opressão desses malditos valores.

O capital me transformou numa pessoa com medo de sentir o prazer de ser, de somente ser humano. Tô congelada! Esse frio me queima e a dor arde. Adentro o inferno sem entender como abro tais portais.

Nossos corpos estão aprisionados, mas nossas almas vagam. Eis a esperança.

Estou saturada de tanto horror e parca confiança na vida. Quem retirou de mim o ímpeto revolucionário? (me pergunto). Mas nem os ecos da minha própria voz posso ouvir. Ao meu lado só vejo, e na mesma proporção ouço, o desespero dos meus iguais. Sim, são iguais a mim, os que por obra do destino (?) desesperam-se ao sentir a barbárie instaurada. Sentimos a dor de ver o pavor e sofrimentos nos olhos alheios.

As amarras do capital aprisionam nossas mãos e nossos pés, mas os nossos corpos decrépitos ainda pulsam em resistência ao horror. Estamos fracos e nossa dor é alimentada pelo perambular de almas vagantes... Não vislumbramos outro caminhar. Porém não negamos a certeza de que outra alternativa é possível.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Sociedade machista e imbecilizada!!!!

Como não ter um olhar pessimista diante de tanta hipocrisia??? Não consigo vislumbrar nada a partir da realidade que vejo, presencio e me conforma. Nada além da opressão. Homens nojentos, mulheres opressoras. “Seres coisas” !!!!

Tomo um banho de chuva pra lavar minha alma, meu desespero, egoísmo e tudo o que me cerca. Mais nada, nada se desfaz! Não há saídas, não há possibilidades. Só derrotas! Desmancho-me com as leituras de um passado de luta que não nos levou a vitória - Desumanos?! Mas, quem é a humanidade se não, nós mesmos, seres humanos que a compomos? - Continuamos oprimidos e o entrelaçamento de opressões é extenso.

Enquanto caminho, percebo homens, muitos, e que me oprimem somente por que sou fêmea. Será que meu sexo só me incumbe o dever de servi-los? Meu corpo tem que ser moldado aos seus desejos, minhas atitudes também. Não possuo o direito de ter subjetividade, sentimentos. Sou uma vagina a perambular pela cidade. E desacompanhada não há quem me represente. Ofereça-me segurança. Preciso de representantes para obter respeito e segurança? Gozado! Pessoas presas ao tempo das cavernas que não utilizam nem 1% do próprio telencéfalo altamente desenvolvido travestem-se com coisas para se sentirem gente (?!). Quantas coisas você precisa pra se sentir melhor? Quantas coisas ainda planeja comprar pra poder se sentir bem? Quantas coisas são necessárias pra traduzir sua personalidade? Ah! Assim não me reconheço em nada. Não sou nada, não quero ser nada, não quero ter nada. Não busco status.

Sociedade sexista que mercantiliza tudo! Mercantilizou meu sentimento, minha vagina,! e meus sonhos?! Não, não me enxergo nesse mundo! Eu odeio tudo o que me cerca tudo o que me oprime. O que mais a realidade me demostra? “Seres-robôs”! Oprimidos conquistando sonhos de opressão.

Quem nesse mundo imbecilizado ainda se preocupa com tudo aquilo que somente seres humanos são capazes de emanarem? Quem me responder a essa pergunta ganha um prêmio! Meritocracia lhe serve? O prêmio te convence como impulsionador pra atingir um objetivo? Meritocracia lhe serve como impulsionador para atingir sua própria liberdade? Quantas coisas ainda quer conquistar para se sentir merecedor da felicidade, da liberdade de poder ser, somente ser?

Não me julgue existencialista. Aliás, não me julgue! A história, é claro, nunca é contada pelos oprimidos. Não é que eu seja ingênua, eu não disse, nem pretendi dizer em momento algum que nós, as oprimidas e os oprimidos, poderíamos exercer nosso poder de articular interpretações, conectar causas e efeitos. Sei que não possuímos o direito de verbalizar o que sentimos. Oprimidas e oprimidos não são capazes de refletir, de elaborar, de analisar nada. Isso é o que nos dizem, e é no que acreditamos. Quantas pessoas que passam fome discursam sobre a dor de senti-la? O direito de expressão conquistado constitucionalmente há mais de 2 séculos, não nos garante absolutamente nada. Quem disse que letra de lei tem valor no vale dos oprimidos... ou suicidas? Estado democrático de direito... eu não te iludo. Responsabilize e culpabilize-se por sua pobreza interna e externa, intelectual e moral, e trabalhe. Trabalhe mais! Você ainda não amadureceu e de podre já caiu da árvore.

Sobre mim somente digo: não possuo letreiros, não chego dentro de caixa, não venho acompanhada de manual, nem de bula!

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Ao meu amor meus pensamentos


Sentada num canto qualquer de um café ela fumava um cigarro enquanto ainda se perdia na lembrança que insistentemente voltava. Á busca de conforto a consciência sublimava os acontecimentos tentando buscar entender os motivos que talvez justificasse a existência do amor. Ela queria se dispor do sentimento que a dominava, sem que seus sentimentos fossem controlados por outrem. Dizia a si que ele buscava reconhecer no domínio e na servidão uma convicção contrária a que procurava afirmar que é nisso que reside a felicidade da vida. Todavia, a “artesã” sabia que o “comerciante” esperava dela a subordinação de seus próprios sentidos à dominação da alma e estava bem convicta de que seria muito prazeroso se ele fizesse o mesmo. Acreditava que a libertação dos sentidos seria a possibilidade real de satisfação dos dois.

Era um caso comum, um rapaz esquizofrênico materialista e uma moça histérica abstrata que pressupunham ser a ausência de uma má consciência a possibilidade real de satisfação. Por algum motivo, mal justificado por suas virtudes sociais, em algum momento de suas vidas haviam se encontrado e, somente por isso, eram os indivíduos centrais do caso. É claro que não percebiam ser por hábito e obrigação dessa sociedade (que reifica tudo, inclusive as relações interpessoais) o impelimento à busca incessante na mesquinhez furtiva. A cultura já havia liberado eles do racionalismo, já havia introjetado neles a natureza que molda a seu modo todas as inclinações e forças da alma.

Os fatos de suas vidas “meio intelectual - meio esquerda” se desenrolavam no pátio de uma universidade (dita a melhor do país) e no interior de uma esquerda, na verdade, não menos decadente que a primeira. Ambas não exploravam a práxis enquanto elemento nuclear. É bem verdade que os dois não viviam um momento propício para que decisões autônomas tornassem o primeiro encontro numa relação fatídica. Mas, por outro lado, relações sinceramente aprazíveis não são previsíveis. Na ordem do dia, em suas agendas mal situadas entre o belo e o necessário, não havia espaço para satisfações de uma nova exigência de felicidade - algo comum no cotidiano de jovens que vivem intensamente suas “paixões”(amor e ódio, alegria e tristeza, ciúme, vergonha, arrependimento, gratidão etc.) como espírito da vida. Mas, mesmo assim, decidiram se conhecer melhor.

Ela costurava nas suas relações um traço decisivo para a afirmação de um mundo mais valioso, incondicionalmente confirmado e eternamente melhor para si e para os outros “a partir do interior”. Enquanto ele estabelecia suas relações no plano do imediato, sem que as qualidades e necessidades pessoais adquirissem relevância, tais como objetos de satisfações possíveis ou não. Em outras palavras, a igualdade abstrata entre eles se realizava no patamar de uma desigualdade concreta.

Sim, é relevante considerar que ele dispunha de um poder de compra superior ao dela, o que o colocava numa posição privilegiada, quando comparado a ela, para adquirir as mercadorias exigidas para assegurar sua felicidade. Porém, também é considerável destacar: à medida que ela pintava em seus tecido sociais o sofrimento e o lamento como eternas forças do mundo, negava a satisfação universal no mundo material, depositava os traços fundamentais de sua personalidade no ideal.

Uma situação verdadeira. A existências dos dois naquele encontro mal adornado confrontava uma injustificada resignação em face do cotidiano. Na busca de assunto, os dois situavam os indivíduos e a si mesmo acima das mediações sociais, confrontando-se como Deuses justificavam entre si um mundo a ser modificado por meio disso ou daquilo. Esquecendo-se que o mundo só poderia ser modificado quando as mediações sociais desaparecessem, na realização de um mundo totalmente outro; que a humanidade precisa ser conduzida para além de seu próprio idealismo.
Eles, somos nós dois, meu caro, não reconheciam quaisquer outros além deles mesmos e nem uma vida outra que não esta aqui. Investigavam o processo do conhecimento do mundo já reificado como se, assim, pudessem ir contra a volubilidade cotidiana, contra as imposições do realismo. Suas almas, profundas e delicadas, estavam equivocadas na luta por um futuro melhor para a humanidade.

O que aconteceu aos dois? No início juraram amor eterno, numa crença além do celestial, celebraram um amor além da alma. Assumindo o anseio pela constância da felicidade terrena buscavam a superação do fim. Foi depois de alguns meses sob acusações de traição e individualismo, que um direcionava ao outro, perceberam que a entrega gratificante da individualidade à solidariedade incondicional não mais se realizava, nem em um nem noutro e passaram a enxergarem-se através dos interesses individuais de forma independente e auto-suficiente.

Entre o “comerciante” e a “artesã”, o conflito de interesses havia “desgastado” a durabilidade duradoura, suas almas não escaparam a lei do valor, nem da reificação. A exigência da exlusividade individualista sob a aparência da fidelidade incondicional tornava obrigatória aos sentidos o que a alma era incapaz de oferecer: a indivisibilidade da pessoa. Possibilidade e realidade efetiva agora estavam de fato confrontadas. A harmonia inexistente entre a interioridade e a exterioridade revelava o perigo da tentativa de controle da racionalização e da felicidade.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Bebi as águas



A saliva, salgada e sem azeite, umedecia as palavras que já não se permitiam aprisionar. Depois de beber o mar, o rancor ingerido precisava ser liberado, e, como a gota d’água trasbordante havia tocado o semblante, não pode contê-lo. O necessário deveria ser concretizado sob as ondas bravias. Palavras doces e amenas saiam de foco, a raiva estava em erupção. Lavas rastejavam diretamente proporcional a indignação, derretendo antigas armadilhas tautológicas de opressão, queimando açoites firmados no acordo burocrático.
Seria suspeito se fosse o movimento de um, mas eram de mais tantos outros sobreviventes da opressão, e eles aglutinavam-se. Ligados por um misto de inconformismo e dor aquele emaranhado de pessoas crescia em volume e extensão. As guardas, inimigos de outrora, incorporavam-se. À medida que percebiam a tolice de tentar conter aquele ímpeto transformador adensavam a mistura, que crescia. Crescia, crescia, como se estivesse sido preenchida por fermento. Crescia tal como a massa de bolo corretamente aquecida...
Derrubaram palanques, estátuas, as diferenças que obstaculizam a emancipação, e tudo mais que trouxesse a lembrança símbolos da submissão consentida. Estavam decididos, como se tivessem acordados em plenária, a solidez da ação. As formigas agiam sem palavras de comando, sem oratória. Agiam de dentro para fora, sem performances. A catarse, acionada pela ação individual, era coletiva, e apresentava a permanência daquele novo e continuo estado. Não havia divisor de águas porque as águas foram bebidas. Estavam abertos os portais da revolução permanente.

sexta-feira, 13 de março de 2009

Voz

Difícil é começar pelo início.
Não sei onde começou o inconformismo.

Recriei relações,
Reinventei formas de viver relacionamentos.
Lutei pelo justo,
pela igualdade,
pela vida.

Só não desinteressada de afeto,
valorando sempre a emancipação da humanidade,
toda minha ação foi sincera.


Na curva da história,
nostálgica,
desejei mais que satisfação das necessidades

Com meus atos, apresentei sonhos
Mas, hoje, as cordas da viola, as cordas vocais
Que emanavam toda a magia.
Puíram

A voz já cansada e rouca, sem potência,
já não soa mais
Nem som, nem melodia

Na certeza da vitória,
a força do entusiasmo,
não se demonstra com vírgulas.

quinta-feira, 5 de março de 2009

O espelho, de Machado de Assis


Quatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite, várias questões de alta transcendência, sem que a disparidade dos votos
trouxesse a menor alteração aos espíritos. A casa ficava no morro de Santa Teresa, a sala era pequena, alumiada a velas, cuja luz fundia-se misteriosamente com o luar que vinha de fora. Entre a cidade, com as suas agitações e aventuras, e o céu, em que as estrelas pestanejavam, através de uma atmosfera límpida e sossegada, estavam os nossos quatro ou cinco investigadores de
coisas metafísicas, resolvendo amigavelmente os mais árduos problemas do universo.

Por que quatro ou cinco? Rigorosamente eram quatro os que falavam; mas, além deles, havia na sala um quinto personagem,
calado, pensando, cochilando, cuja espórtula no debate não passava de um ou outro resmungo de aprovação. Esse homem tinha a mesma idade dos companheiros, entre quarenta e cinqüenta anos, era provinciano, capitalista, inteligente, não sem instrução, e, ao que parece, astuto e cáustico. Não discutia nunca; e defendia-se da abstenção com um paradoxo, dizendo que a discussão é a forma polida do instinto batalhador, que jaz no homem, como uma herança bestial; e acrescentava que os serafins e os querubins não controvertiam nada, e, aliás, eram a perfeição espiritual e eterna. Como desse esta mesma resposta naquela noite, contestou-lha um dos presentes, e desafiou-o a demonstrar o que dizia, se era capaz. Jacobina (assim se chamava ele) refletiu um instante, e respondeu:

- Pensando bem, talvez o senhor tenha razão.

Vai senão quando, no meio da noite, sucedeu que este casmurro usou da palavra, e não dois ou três minutos, mas trinta ou
quarenta. A conversa, em seus meandros, veio a cair na natureza da alma, ponto que dividiu radicalmente os quatro amigos.
Cada cabeça, cada sentença; não só o acordo, mas a mesma discussão tornou-se difícil, senão impossível, pela multiplicidade
das questões que se deduziram do tronco principal e um pouco, talvez, pela inconsistência dos pareceres. Um dos
argumentadores pediu ao Jacobina alguma opinião, - uma conjetura, ao menos.

- Nem conjetura, nem opinião, redargüiu ele; uma ou outra pode dar lugar a dissentimento, e, como sabem, eu não discuto. Mas, se querem ouvir-me calados, posso contar-lhes um caso de minha vida, em que ressalta a mais clara demonstração acerca da matéria de que se trata. Em primeiro lugar, não há uma só alma, há duas...

- Duas?

- Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha
de fora para entro... Espantem-se à vontade, podem ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo; não admito réplica. Se me
replicarem, acabo o charuto e vou dormir. A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um
objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; - e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira. Shylock, por exemplo. A alma exterior aquele judeu eram os seus ducados; perdê-los equivalia a morrer. "Nunca mais verei o meu ouro, diz ele a Tubal; é um punhal que me enterras no coração." Vejam bem esta frase; a perda dos ducados, alma exterior, era a morte para ele. Agora, é preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma...

- Não?

- Não, senhor; muda de natureza e de estado. Não aludo a certas almas absorventes, como a pátria, com a qual disse o Camões que morria, e o poder, que foi a alma exterior de César e de Cromwell. São almas enérgicas e exclusivas; mas há outras, embora enérgicas, de natureza mudável. Há cavalheiros, por exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros anos, foi um chocalho ou um cavalinho de pau, e mais tarde uma provedoria de irmandade, suponhamos. Pela minha parte, conheço uma senhora, - na verdade, gentilíssima, - que muda de alma exterior cinco, seis vezes por ano. Durante a estação lírica é a ópera; cessando a estação, a alma exterior substitui-se por outra: um concerto, um baile do Cassino, a rua do Ouvidor, Petrópolis...

- Perdão; essa senhora quem é?

- Essa senhora é parenta do diabo, e tem o mesmo nome; chama-se Legião... E assim outros mais casos. Eu mesmo tenho
experimentado dessas trocas. Não as relato, porque iria longe; restrinjo-me ao episódio de que lhes falei. Um episódio dos meus vinte e cinco anos...

Os quatro companheiros, ansiosos de ouvir o caso prometido, esqueceram a controvérsia. Santa curiosidade! tu não és só a
alma da civilização, és também o pomo da concórdia, fruta divina, de outro sabor que não aquele pomo da mitologia. A sala, até há pouco ruidosa de física e metafísica, é agora um mar morto; todos os olhos estão no Jacobina, que conserta a ponta do
charuto, recolhendo as memórias. Eis aqui como ele começou a narração:

- Tinha vinte e cinco anos, era pobre, e acabava de ser nomeado alferes da Guarda Nacional. Não imaginam o acontecimento
que isto foi em nossa casa. Minha mãe ficou tão orgulhosa! tão contente! Chamava-me o seu alferes. Primos e tios, foi tudo uma alegria sincera e pura. Na vila, note-se bem, houve alguns despeitados; choro e ranger de dentes, como na Escritura; e o motivo não foi outro senão que o posto tinha muitos candidatos e que esses perderam. Suponho também que uma parte do desgosto foi inteiramente gratuita: nasceu da simples distinção. Lembra-me de alguns rapazes, que se davam comigo, e passaram a olhar-me de revés, durante algum tempo. Em compensação, tive muitas pessoas que ficaram satisfeitas com a nomeação; e a prova é que todo o fardamento me foi dado por amigos... Vai então uma das minhas tias, D. Marcolina, viúva do Capitão Peçanha, que morava a muitas léguas da vila, num sítio escuso e solitário, desejou ver-me, e pediu que fosse ter com ela e levasse a farda. Fui, acompanhado de um pajem, que daí a dias tornou à vila, porque a tia Marcolina, apenas me pilhou no sítio, escreveu a minha mãe dizendo que não me soltava antes de um mês, pelo menos. E abraçava-me! Chamava-me também o seu alferes. Achava-me um rapagão bonito. Como era um tanto patusca, chegou a confessar que tinha inveja da moça que houvesse de ser minha mulher. Jurava que em toda a província não havia outro que me pusesse o pé adiante. E sempre alferes; era alferes para cá, alferes para lá, alferes a toda a hora. Eu pedia-lhe que me chamasse Joãozinho, como dantes; e ela abanava a cabeça, bradando que não, que era o "senhor alferes". Um cunhado dela, irmão do finado Peçanha, que ali morava, não me chamava de outra maneira. Era o "senhor alferes", não por gracejo, mas a sério, e à vista dos escravos, que naturalmente foram pelo mesmo caminho. Na mesa tinha eu o melhor lugar, e era o primeiro servido. Não imaginam. Se lhes disser que o entusiasmo da tia Marcolina chegou ao ponto de mandar pôr no meu quarto um grande espelho, obra rica e magnífica, que destoava do resto da casa, cuja mobília era modesta e simples... Era um espelho que lhe dera a madrinha, e que esta herdara da mãe, que o comprara a uma das fidalgas vindas em 1808 com a corte de D. João VI. Não sei o que havia nisso de verdade; era a tradição. O espelho estava naturalmente muito velho; mas via-se-lhe ainda o ouro, comido em parte pelo tempo, uns delfins esculpidos nos ângulos superiores da moldura, uns enfeites de madrepérola e outros caprichos do artista. Tudo velho, mas bom...

- Espelho grande?

- Grande. E foi, como digo, uma enorme fineza, porque o espelho estava na sala; era a melhor peça da casa. Mas não houve
forças que a demovessem do propósito; respondia que não fazia falta, que era só por algumas semanas, e finalmente que o
"senhor alferes" merecia muito mais. O certo é que todas essas coisas, carinhos, atenções, obséquios, fizeram em mim uma
transformação, que o natural sentimento da mocidade ajudou e completou. Imaginam, creio eu?

- Não.

- O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade. Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto, nada do que me falava do homem. A única parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente; a outra dispersou-se no ar e no passado. Custa-lhes acreditar, não?

- Custa-me até entender, respondeu um dos ouvintes.

- Vai entender. Os fatos explicarão melhor os sentimentos: os fatos são tudo. A melhor definição do amor não vale um beijo de moça namorada; e, se bem me lembro, um filósofo antigo demonstrou o movimento andando. Vamos aos fatos. Vamos ver
como, ao tempo em que a consciência do homem se obliterava, a do alferes tornava-se viva e intensa. As dores humanas, as
alegrias humanas, se eram só isso, mal obtinham de mim uma compaixão apática ou um sorriso de favor. No fim de três semanas, era outro, totalmente outro. Era exclusivamente alferes. Ora, um dia recebeu a tia Marcolina uma notícia grave; uma de suas filhas, casada com um lavrador residente dali a cinco léguas, estava mal e à morte. Adeus, sobrinho! adeus, alferes! Era mãe extremosa, armou logo uma viagem, pediu ao cunhado que fosse com ela, e a mim que tomasse conta do sítio. Creio que, se não fosse a aflição, disporia o contrário; deixaria o cunhado e iria comigo. Mas o certo é que fiquei só, com os poucos escravos da casa. Confesso-lhes que desde logo senti uma grande opressão, alguma coisa semelhante ao efeito de quatro paredes de um cárcere, subitamente levantadas em torno de mim. Era a alma exterior que se reduzia; estava agora limitada a alguns espíritos boçais. O alferes continuava a dominar em mim, embora a vida fosse menos intensa, e a consciência mais débil. Os escravos punham uma nota de humildade nas suas cortesias, que de certa maneira compensava a afeição dos parentes e a intimidade doméstica interrompida. Notei mesmo, naquela noite, que eles redobravam de respeito, de alegria, de protestos. Nhô alferes, de minuto a minuto; nhô alferes é muito bonito; nhô alferes há de ser coronel; nhô alferes há de casar com moça bonita, filha de general; um concerto de louvores e profecias, que me deixou extático. Ah ! pérfidos! mal podia eu suspeitar a intenção secreta dos malvados.

- Matá-lo?

- Antes assim fosse.

- Coisa pior?

- Ouçam-me. Na manhã seguinte achei-me só. Os velhacos, seduzidos por outros, ou de movimento próprio, tinham resolvido
fugir durante a noite; e assim fizeram. Achei-me só, sem mais ninguém, entre quatro paredes, diante do terreiro deserto e da roça
abandonada. Nenhum fôlego humano. Corri a casa toda, a senzala, tudo; ninguém, um molequinho que fosse. Galos e galinhas
tão-somente, um par de mulas, que filosofavam a vida, sacudindo as moscas, e três bois. Os mesmos cães foram levados pelos
escravos. Nenhum ente humano. Parece-lhes que isto era melhor do que ter morrido? era pior. Não por medo; juro-lhes que não tinha medo; era um pouco atrevidinho, tanto que não senti nada, durante as primeiras horas. Fiquei triste por causa do dano causado à tia Marcolina; fiquei também um pouco perplexo, não sabendo se devia ir ter com ela, para lhe dar a triste notícia, ou ficar tomando conta da casa. Adotei o segundo alvitre, para não desamparar a casa, e porque, se a minha prima enferma estava mal, eu ia somente aumentar a dor da mãe, sem remédio nenhum; finalmente, esperei que o irmão do tio Peçanha voltasse naquele dia ou no outro, visto que tinha saído havia já trinta e seis horas. Mas a manhã passou sem vestígio dele; à tarde comecei a sentir a sensação como de pessoa que houvesse perdido toda a ação nervosa, e não tivesse consciência da ação muscular. O irmão do tio Peçanha não voltou nesse dia, nem no outro, nem em toda aquela semana. Minha solidão tomou proporções enormes. Nunca os dias foram mais compridos, nunca o sol abrasou a terra com uma obstinação mais cansativa. As horas batiam de século a século no velho relógio da sala, cuja pêndula tic-tac, tic-tac, feria-me a alma interior, como um piparote contínuo da eternidade. Quando, muitos anos depois, li uma poesia americana, creio que de Longfellow, e topei este famoso estribilho: Never, for ever! - For ever, never! confesso-lhes que tive um calafrio: recordei-me daqueles dias medonhos. Era justamente assim que fazia o relógio da tia Marcolina: - Never, for ever!- For ever, never! Não eram golpes de pêndula, era um diálogo do abismo, um cochicho do nada. E então de noite! Não que a noite fosse mais silenciosa. O silêncio era o mesmo que de dia. Mas a noite era a sombra, era a solidão ainda mais estreita, ou mais larga. Tic-tac, tic-tac. Ninguém, nas salas, na varanda, nos corredores, no terreiro, ninguém em parte nenhuma... Riem-se?

- Sim, parece que tinha um pouco de medo.

- Oh! fora bom se eu pudesse ter medo! Viveria. Mas o característico daquela situação é que eu nem sequer podia ter medo,
isto é, o medo vulgarmente entendido. Tinha uma sensação inexplicável. Era como um defunto andando, um sonâmbulo, um
boneco mecânico. Dormindo, era outra coisa. O sono dava-me alívio, não pela razão comum de ser irmão da morte, mas por
outra. Acho que posso explicar assim esse fenômeno: - o sono, eliminando a necessidade de uma alma exterior, deixava atuar a alma interior. Nos sonhos, fardava-me orgulhosamente, no meio da família e dos amigos, que me elogiavam o garbo, que me
chamavam alferes; vinha um amigo de nossa casa, e prometia-me o posto de tenente, outro o de capitão ou major; e tudo isso
fazia-me viver. Mas quando acordava, dia claro, esvaía-se com o sono a consciência do meu ser novo e único -porque a alma
interior perdia a ação exclusiva, e ficava dependente da outra, que teimava em não tornar... Não tornava. Eu saía fora, a um lado e outro, a ver se descobria algum sinal de regresso. Soeur Anne, soeur Anne, ne vois-tu rien venir? Nada, coisa nenhuma; tal qual como na lenda francesa. Nada mais do que a poeira da estrada e o capinzal dos morros. Voltava para casa, nervoso, desesperado, estirava-me no canapé da sala. Tic-tac, tic-tac. Levantava-me, passeava, tamborilava nos vidros das janelas, assobiava. Em certa ocasião lembrei-me de escrever alguma coisa, um artigo político, um romance, uma ode; não escolhi nada definitivamente; sentei-me e tracei no papel algumas palavras e frases soltas, para intercalar no estilo. Mas o estilo, como tia Marcolina, deixava-se estar. Soeur Anne, soeur Anne... Coisa nenhuma. Quando muito via negrejar a tinta e alvejar o papel.

- Mas não comia?

- Comia mal, frutas, farinha, conservas, algumas raízes tostadas ao fogo, mas suportaria tudo alegremente, se não fora a terrível
situação moral em que me achava. Recitava versos, discursos, trechos latinos, liras de Gonzaga, oitavas de Camões, décimas,
uma antologia em trinta volumes. As vezes fazia ginástica; outra dava beliscões nas pernas; mas o efeito era só uma sensação
física de dor ou de cansaço, e mais nada. Tudo silêncio, um silêncio vasto, enorme, infinito, apenas sublinhado pelo eterno tic-tac da pêndula. Tic-tac, tic-tac...

- Na verdade, era de enlouquecer.

- Vão ouvir coisa pior. Convém dizer-lhes que, desde que ficara só, não olhara uma só vez para o espelho. Não era abstenção
deliberada, não tinha motivo; era um impulso inconsciente, um receio de achar-me um e dois, ao mesmo tempo, naquela casa
solitária; e se tal explicação é verdadeira, nada prova melhor a contradição humana, porque no fim de oito dias deu-me na veneta de olhar para o espelho com o fim justamente de achar-me dois. Olhei e recuei. O próprio vidro parecia conjurado com o resto do universo; não me estampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra. A realidade das leis físicas não permite negar que o espelho reproduziu-me textualmente, com os mesmos contornos e feições; assim devia ter sido. Mas tal não foi a minha sensação. Então tive medo; atribuí o fenômeno à excitação nervosa em que andava; receei ficar mais tempo, e enlouquecer. - Vou-me embora, disse comigo. E levantei o braço com gesto de mau humor, e ao mesmo tempo de decisão, olhando para o vidro; o gesto lá estava, mas disperso, esgaçado, mutilado... Entrei a vestir-me, murmurando comigo, tossindo sem tosse, sacudindo a roupa com estrépito, afligindo-me a frio com os botões, para dizer alguma coisa. De quando em quando, olhava furtivamente para o espelho; a imagem era a mesma difusão de linhas, a mesma decomposição de contornos... Continuei a vestir-me. Subitamente por uma inspiração inexplicável, por um impulso sem cálculo, lembrou-me... Se forem capazes de adivinhar qual foi a minha idéia...

- Diga.

- Estava a olhar para o vidro, com uma persistência de desesperado, contemplando as próprias feições derramadas e
inacabadas, uma nuvem de linhas soltas, informes, quando tive o pensamento... Não, não são capazes de adivinhar.

- Mas, diga, diga.

- Lembrou-me vestir a farda de alferes. Vesti-a, aprontei-me de todo; e, como estava defronte do espelho, levantei os olhos, e...não lhes digo nada; o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior. Essa alma ausente com a dona do sítio, dispersa e fugida com os escravos, ei-la recolhida no espelho. Imaginai um homem que, pouco a pouco, emerge de um letargo, abre os olhos sem ver, depois começa a ver, distingue as pessoas dos objetos, mas não conhece individualmente uns nem outros; enfim, sabe que este é Fulano, aquele é Sicrano; aqui está uma cadeira, ali um sofá. Tudo volta ao que era antes do sono. Assim foi comigo. Olhava para o espelho, ia de um lado para outro, recuava, gesticulava, sorria e o vidro exprimia tudo. Não era mais um autômato, era um ente animado. Daí em diante, fui outro. Cada dia, a uma certa hora, vestia-me de alferes, e sentava-me diante do espelho, lendo olhando, meditando; no fim de duas, três horas, despia-me outra vez. Com este regime pude atravessar mais seis dias de solidão sem os sentir...

Quando os outros voltaram a si, o narrador tinha descido as escadas.

sábado, 28 de fevereiro de 2009

Cocanha


Escute agora quem está aqui.
Todos devem ser meus amigos
E me honrar como seu pai,
Pois é correto e lógico que apareça

A grande sabedoria que Deus me deu,
Antes de contar
O que vocês escutarão e
Muito os alegrará.

Não tenho muita idade, mas
Nem por isso sou menos sábio.
Uma coisa vocês devem saber:
Barba grande não significa sabedoria;

Se os barbados fossem sábios
Bodes e cabras também o seriam.
Não valorizem a barba,
Pois muitos a têm grande, mas a inteligência pequena:

O Jovem é muito sensato.
Ao apóstolo de Roma
Fui pedir penitência
Ele me enviou a uma terra

Onde vi muitas maravilhas:
Agora ouçam como são
Os habitantes daquele país (cidade do sol)
Creio que Deus e todos os seus santos

Abençoaram-na e sagraram-na mais
Que qualquer outra região.
O nome do país é Cocanha;
Lá quem mais dorme mais ganha:

Quem dorme até o meio-dia
Ganha cinco soldos e meio.
De barbos, salmões e sáveis
São muros de todas as casas;

Os caibros lá são esturjões,
Os telhados de toicinho,
As cercas são de salsichas.
Exite muito mais naquela terra de delícias,

Pois de carne assada e presunto
São cercados os campos de trigo ;
Pelas ruas vão se assando
Gordos gansos que giram

Sozinhos, regados
Com branco molho de alho.
Digo aindaa vocês que por toda a parte,
Pelos caminhos e pelas ruas,

Encontram-se mesas postas
Com toalhas brancas,
Onde se pode beber e comer
Tudo o que se quiserem sem problema;

Sem oposição e sem proibição
Cada um pega tudo o que seu coração deseja,
Uns peixes outros, carne;
Se alguém quer carne

Basta pegar a seu bel prezer;
Carne de cervo ou de ave,
Assada ou emsopada,
Sem pagar nada

Mesmo apóa a refeição.
É assim nesse país.
É pura e comprovada verdade
Que na terra abençoada

Corre um riacho de vinho.
As canecas aproximam-se dali por si sós,
Assim como os copos
E as taças de ouro e prata.

Este riacho do qual falo
É metade de vinho tinto,
Do melhor que se pode achar
Em Beaune ou no além mar;

A outra pare é de vinho branco,
Melhor e mais fino
Que o produzido em Auxerre,
La Rochelle ou Tornnerre.

Quem quiser é só chegar,
Pegar pelo meio ou pelas margens,
E beber em qualquer lugar
Sem oposição e sem medo,

Sem pagar sequer uma moeda.
As pessoas lá não são vis,
São pelo contrário virtuosas e corteses.
Seis semanas tem lá o mês,

Quatro páscoas tem o ano,
E quatro festas de São João.
Há no ano quatro vindimas,
Feriado e domingo todo dia.

Quatro Todos os Santos, quatro Natais,
Quatro candelárias anuais,
Quatro Carnavais,
E Quaresma, uma a cada vinte anos,

Quando é agradével jejuar
Pois todos mantém seus bens;
Desde as matinas até depois da nona
Come-se o que Deus dá,

Carne, peixe ou outra coisa.
Ninguém ousa proibir algo.
Não pensem que é piada,
Ninguém, de qualquer condição,

Sofre em jejuar:
Três dias por seman chovem
Pudins quentes
Pra cabeludos ou calvos,

Para todos, eu sei porque vi.
Ali pega-se tudo à vontade.
O país é tão rico
Que bolsas cheias de moedas

Estão jogadas pelo chão;
Morabitinos e besantes
Estão por toda a parte inúteis:
Lá ninguém compra nem vende.

As mulheres dali, tão belas,
Maduras e jovens,
Cada qual pega aquela que lhe convém,
Sem descontentar ninguém.

Cada um satisfaz seu prazer
Como quer e por lazer;
Elas não serão por isso censuradas,
serão mesmo muito mais honradas.

E se acontece porventura
De uma mulher se interessar
Por um homem,
Ela o pega no meio da rua

E ali satisafz seu desejo.
Assim uns fazem a felicidade dos outros.
E digo a verdade a vocês,
Nessa terra abençoada

Há tecelões muito corteses,
Pois todo mês distribuem
De bom grado e com prazer
Roupas de diversos tipos;

Quem quiser tem roupa de brunete ,
De escarlate ou de violete
Ou de biffe de boas qualidade,
Ou de vert ou de saie escura,

Ou de seda alexandrina,
De tecido listrado ou de chamelin,
O que mais irei contar?
Existem lá tantas roupas

Das quais se pega à vontade,
Umas de cor, outras cinsas,
E, para quem quer, forradas de arminho.
A terra é tão feliz

Que tem sapateiros
Que não considero despresíveis,
Pois cheios de delicadeza
Distribuem calçados com cadarço,

Boatas e botinas bem-feitas;
Quem quiser as terá,
Bem moldadas aos pés.
Se quiser trezentas delas por dia.

Ou mesmo mais, obterá:
Tais sapateiros existem lá.
Há ainda outra maravilha,
Vocês jamais ouviram coisa semelhante:

A fonte da Juventude
Que rejuvenesce as pessoas,
E traz outros benefícios.
Lá não haverá, bem o sei,

Homem tão velho ou tão encanecido,
Nem mulher tão velha que,
tendo cãs ou cabelos grisalhos,
Não volte a ter trinta anos de idade,

Se à fonte puder ir;
Lá podem rejuvenescer
Aqueles que moram no país.
Certamente é muito louco u ingênuo

Quem pode entrar naquela terra
E de lá saiu.
Eu mesmo o sei,
Posso entender isso muito bem,

Pois fui louco
Quando de lá saí;
Mas meus amigos eu queria
para aquela terra levar,

Junto comigo, se pudesse,
Mas desde então não posso lá entrar.
O canminho que seguira,
Nem a trilha, nem a estrada,

Jamais pude encontrar.
E como não posso voltar,
Não tenho como me consolar.
Por isso uma coisa vou lhes dizer:

Se vocês estão bem,
Não mudem por nada,
Senão podem acabar mal.
Pois como ouvi muitas vezes

Em um provérbio,
"Quem está bem não mude,
Pois pouco ganhará;
Eis o que nos ensina o texto.


A poesia "Cocanha" originalmente foi criada na Idade Média pelos populares.
Na minha opnião é o primeiro "Manifesto Popular Contra o Trabalho", ou seja a "Sociedade do Trabalho".

Poesia retirada do livro de Hilário Franco Junior

*Cocanha: A história de um país imaginário - são Paulo: Companhia das letras, 1998

domingo, 8 de fevereiro de 2009

Declaro que morri


Não consigo mais viver em vão
Minhas mãos, embora presas
permitem-me tatear a liberdade


submersa como estoume cegar a esta profundidade
é algo que não posso mais


Parte de mim é morte que vai


A outra é vida que fica a me esperançar
E festeja todas as vezes


que o desejo almejado
em pequenos gestos, se processam
Não posso mais fugir da morte constante
Já que, só na vida posso deslumbraro sonho que me transborda
me reconstruo em espaços curtos de tempo
para traçar um novo amanhã.


Parte de mim é morte que vai
O amanha é morte que vai


Escrita em algum dia de 2007

"Humanóides"


O zumbir dos carros afeta os meus ouvidos como os barulhos que o vizinho do compartimento ao lado parece propositadamente provocar.
Não são zumbidos de abelhas, pois os campos para pastos são por ora ruas para a massa transitar: Gado humano!,
Útil não para suas próprias individualidades e interesses mesquinhos.
Útil sim. Mas, para agregar valores não para próprio usufruto.
Posto que, se "os valores"antes tinha a serventia das virtudes.
Agora, só confere ao outro, que lhe subordina, o lucro.
Nada mais.


Escrita em agosto de 2008 quando a autora vivia uma experiência um tanto quanto incomum: Morar numa ocupação enquanto escrevia sua monografia de conclusão de curso.

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Sociedade machista e imbecilizada!!!!

Como não ter um olhar pessimista diante de tanta hipocrisia??? Não consigo vislumbrar nada a partir da realidade que vejo, presencio e me conforma. Nada além da opressão. Homens nojentos, mulheres opressoras. “Seres coisas” !!!!
Tomo um banho de chuva pra lavar minha alma, meu desespero, egoísmo e tudo o que me cerca. Mais nada, nada se desfaz! Não há saídas, não há possibilidades. Só derrotas! Desmancho-me com as leituras de um passado de luta que não nos levou a vitória - Desumanos?! Mas, quem é a humanidade se não, nós mesmos, seres humanos que a compomos? - Continuamos oprimidos e o entrelaçamento de opressões é extenso.
Enquanto caminho, percebo homens, muitos, e que me oprimem somente por que sou fêmea. Será que meu sexo só me incumbe o dever de servi-los? Meu corpo tem que ser moldado aos seus desejos, minhas atitudes também. Não possuo o direito de ter subjetividade, sentimentos. Sou uma vagina a perambular pela cidade. E desacompanhada não há quem me represente. Ofereça-me segurança. Preciso de representantes para obter respeito e segurança? Gozado! Pessoas presas ao tempo das cavernas que não utilizam nem 1% do próprio telencéfalo altamente desenvolvido travestem-se com coisas para se sentirem gente (?!). Quantas coisas você precisa pra se sentir melhor? Quantas coisas ainda planeja comprar pra poder se sentir bem? Quantas coisas são necessárias pra traduzir sua personalidade? Ah! Assim não me reconheço em nada. Não sou nada, não quero ser nada, não quero ter nada. Não busco status.
Sociedade sexista que mercantiliza tudo! Mercantilizou meu sentimento, minha vagina,! e meus sonhos?! Não, não me enxergo nesse mundo! Eu odeio tudo o que me cerca tudo o que me oprime. O que mais a realidade me demostra? “Seres-robôs”! Oprimidos conquistando sonhos de opressão.
Quem nesse mundo imbecilizado ainda se preocupa com tudo aquilo que somente seres humanos são capazes de emanarem? Quem me responder a essa pergunta ganha um prêmio! Meritocracia lhe serve? O prêmio te convence como impulsionador pra atingir um objetivo? Meritocracia lhe serve como impulsionador para atingir sua própria liberdade? Quantas coisas ainda quer conquistar para se sentir merecedor da felicidade, da liberdade de poder ser, somente ser?
Não me julgue existencialista. Aliás, não me julgue! A história, é claro, nunca é contada pelos oprimidos. Não é que eu seja ingênua, eu não disse, nem pretendi dizer em momento algum que nós, as oprimidas e os oprimidos, poderíamos exercer nosso poder de articular interpretações, conectar causas e efeitos. Sei que não possuímos o direito de verbalizar o que sentimos. Oprimidas e oprimidos não são capazes de refletir, de elaborar, de analisar nada. Isso é o que nos dizem, e é no que acreditamos. Quantas pessoas que passam fome discursam sobre a dor de senti-la? O direito de expressão conquistado constitucionalmente há mais de 2 séculos, não nos garante absolutamente nada. Quem disse que letra de lei tem valor no vale dos oprimidos... ou suicidas? Estado democrático de direito... eu não te iludo. Responsabilize e culpabilize-se por sua pobreza interna e externa, intelectual e moral, e trabalhe. Trabalhe mais! Você ainda não amadureceu e de podre já caiu da árvore.
Sobre mim somente digo: não possuo letreiros, não chego dentro de caixa, não venho acompanhada de manual, nem de bula!

Greve - Gioconda Belli



Quero uma greve onde vamos todos.
Uma greve de braços, pernas, de cabelos,
Uma greve nascendo em cada corpo.

Quero uma greve
De operários, de pombas
De chofres, de flores
De técnicos, de crianças
De médicos, de mulheres

Quero uma greve grande,
Que até o amor alcance.
Uma greve onde tudo se detenha,
O relógio das fábricas
O seminário, os colégios
O ônibus, os hospitais
A estrada, os portos.

Uma greve de olhos, de mão e de beijo.
Uma grave onde respirar não seja permitido,
Uma greve onde nasça o silêncioPara ouvir os passos do tirano que se marcha.

Novo Tempo - Ivan Lins


No novo tempo, apesar dos castigos
Estamos crescidos, estamos atentos, estamos mais vivos
Pra nos socorrer, pra nos socorrer, pra nos socorrer
No novo tempo, apesar dos perigos
Da força mais bruta, da noite que assusta, estamos na luta
Pra sobreviver, pra sobreviver, pra sobreviver
Pra que nossa esperança seja mais que a vingança
Seja sempre um caminho que se deixa de herança
No novo tempo, apesar dos castigos
De toda fadiga, de toda injustiça, estamos na briga
Pra nos socorrer, pra nos socorrer, pra nos socorrer
No novo tempo, apesar dos perigos
De todos os pecados, de todos enganos, estamos marcados
Pra sobreviver, pra sobreviver, pra sobreviver
No novo tempo, apesar dos castigos
Estamos em cena, estamos nas ruas, quebrando as algemas
Pra nos socorrer, pra nos socorrer, pra nos socorrer
No novo tempo, apesar dos perigos
A gente se encontra cantando na praça, fazendo pirraça
Pra sobreviver, pra sobreviver, pra sobreviver