sábado, 28 de fevereiro de 2009

Cocanha


Escute agora quem está aqui.
Todos devem ser meus amigos
E me honrar como seu pai,
Pois é correto e lógico que apareça

A grande sabedoria que Deus me deu,
Antes de contar
O que vocês escutarão e
Muito os alegrará.

Não tenho muita idade, mas
Nem por isso sou menos sábio.
Uma coisa vocês devem saber:
Barba grande não significa sabedoria;

Se os barbados fossem sábios
Bodes e cabras também o seriam.
Não valorizem a barba,
Pois muitos a têm grande, mas a inteligência pequena:

O Jovem é muito sensato.
Ao apóstolo de Roma
Fui pedir penitência
Ele me enviou a uma terra

Onde vi muitas maravilhas:
Agora ouçam como são
Os habitantes daquele país (cidade do sol)
Creio que Deus e todos os seus santos

Abençoaram-na e sagraram-na mais
Que qualquer outra região.
O nome do país é Cocanha;
Lá quem mais dorme mais ganha:

Quem dorme até o meio-dia
Ganha cinco soldos e meio.
De barbos, salmões e sáveis
São muros de todas as casas;

Os caibros lá são esturjões,
Os telhados de toicinho,
As cercas são de salsichas.
Exite muito mais naquela terra de delícias,

Pois de carne assada e presunto
São cercados os campos de trigo ;
Pelas ruas vão se assando
Gordos gansos que giram

Sozinhos, regados
Com branco molho de alho.
Digo aindaa vocês que por toda a parte,
Pelos caminhos e pelas ruas,

Encontram-se mesas postas
Com toalhas brancas,
Onde se pode beber e comer
Tudo o que se quiserem sem problema;

Sem oposição e sem proibição
Cada um pega tudo o que seu coração deseja,
Uns peixes outros, carne;
Se alguém quer carne

Basta pegar a seu bel prezer;
Carne de cervo ou de ave,
Assada ou emsopada,
Sem pagar nada

Mesmo apóa a refeição.
É assim nesse país.
É pura e comprovada verdade
Que na terra abençoada

Corre um riacho de vinho.
As canecas aproximam-se dali por si sós,
Assim como os copos
E as taças de ouro e prata.

Este riacho do qual falo
É metade de vinho tinto,
Do melhor que se pode achar
Em Beaune ou no além mar;

A outra pare é de vinho branco,
Melhor e mais fino
Que o produzido em Auxerre,
La Rochelle ou Tornnerre.

Quem quiser é só chegar,
Pegar pelo meio ou pelas margens,
E beber em qualquer lugar
Sem oposição e sem medo,

Sem pagar sequer uma moeda.
As pessoas lá não são vis,
São pelo contrário virtuosas e corteses.
Seis semanas tem lá o mês,

Quatro páscoas tem o ano,
E quatro festas de São João.
Há no ano quatro vindimas,
Feriado e domingo todo dia.

Quatro Todos os Santos, quatro Natais,
Quatro candelárias anuais,
Quatro Carnavais,
E Quaresma, uma a cada vinte anos,

Quando é agradével jejuar
Pois todos mantém seus bens;
Desde as matinas até depois da nona
Come-se o que Deus dá,

Carne, peixe ou outra coisa.
Ninguém ousa proibir algo.
Não pensem que é piada,
Ninguém, de qualquer condição,

Sofre em jejuar:
Três dias por seman chovem
Pudins quentes
Pra cabeludos ou calvos,

Para todos, eu sei porque vi.
Ali pega-se tudo à vontade.
O país é tão rico
Que bolsas cheias de moedas

Estão jogadas pelo chão;
Morabitinos e besantes
Estão por toda a parte inúteis:
Lá ninguém compra nem vende.

As mulheres dali, tão belas,
Maduras e jovens,
Cada qual pega aquela que lhe convém,
Sem descontentar ninguém.

Cada um satisfaz seu prazer
Como quer e por lazer;
Elas não serão por isso censuradas,
serão mesmo muito mais honradas.

E se acontece porventura
De uma mulher se interessar
Por um homem,
Ela o pega no meio da rua

E ali satisafz seu desejo.
Assim uns fazem a felicidade dos outros.
E digo a verdade a vocês,
Nessa terra abençoada

Há tecelões muito corteses,
Pois todo mês distribuem
De bom grado e com prazer
Roupas de diversos tipos;

Quem quiser tem roupa de brunete ,
De escarlate ou de violete
Ou de biffe de boas qualidade,
Ou de vert ou de saie escura,

Ou de seda alexandrina,
De tecido listrado ou de chamelin,
O que mais irei contar?
Existem lá tantas roupas

Das quais se pega à vontade,
Umas de cor, outras cinsas,
E, para quem quer, forradas de arminho.
A terra é tão feliz

Que tem sapateiros
Que não considero despresíveis,
Pois cheios de delicadeza
Distribuem calçados com cadarço,

Boatas e botinas bem-feitas;
Quem quiser as terá,
Bem moldadas aos pés.
Se quiser trezentas delas por dia.

Ou mesmo mais, obterá:
Tais sapateiros existem lá.
Há ainda outra maravilha,
Vocês jamais ouviram coisa semelhante:

A fonte da Juventude
Que rejuvenesce as pessoas,
E traz outros benefícios.
Lá não haverá, bem o sei,

Homem tão velho ou tão encanecido,
Nem mulher tão velha que,
tendo cãs ou cabelos grisalhos,
Não volte a ter trinta anos de idade,

Se à fonte puder ir;
Lá podem rejuvenescer
Aqueles que moram no país.
Certamente é muito louco u ingênuo

Quem pode entrar naquela terra
E de lá saiu.
Eu mesmo o sei,
Posso entender isso muito bem,

Pois fui louco
Quando de lá saí;
Mas meus amigos eu queria
para aquela terra levar,

Junto comigo, se pudesse,
Mas desde então não posso lá entrar.
O canminho que seguira,
Nem a trilha, nem a estrada,

Jamais pude encontrar.
E como não posso voltar,
Não tenho como me consolar.
Por isso uma coisa vou lhes dizer:

Se vocês estão bem,
Não mudem por nada,
Senão podem acabar mal.
Pois como ouvi muitas vezes

Em um provérbio,
"Quem está bem não mude,
Pois pouco ganhará;
Eis o que nos ensina o texto.


A poesia "Cocanha" originalmente foi criada na Idade Média pelos populares.
Na minha opnião é o primeiro "Manifesto Popular Contra o Trabalho", ou seja a "Sociedade do Trabalho".

Poesia retirada do livro de Hilário Franco Junior

*Cocanha: A história de um país imaginário - são Paulo: Companhia das letras, 1998

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